"A morte é quando dividimos pelo meio e unimos pelas bordas. Vá! Vá agora! Não pare no caminho, o tempo tem pressa! A vela está acesa, e a chama ainda queima!".
Edson Carvalho do Nascimento
A morte assim como a vida é integrante da condição humana. A sociedade não está muito inclinada a considerar esses fenômenos; sente-se mais atraída pela beleza, pelo aspecto saudável e jovem do existir. Assim, qualquer questionamento ou abordagem sobre o sentido da morte deve levar em conta algumas considerações muito bem levantadas pela frase de La Rochefoucauld, "Não se pode olhar fixamente nem o sol nem a morte". A complexidade de se falar sobre a morte, é que dela não temos experiência alguma, possuímos apenas uma frágil imaginação do que é morrer. Acredito que a ausência de conceitos pode explicar, porque, a rigor a morte não é o nada. Ousaria, portanto falar da morte, mesmo ela sendo exorcizada pela nossa sociedade que se utiliza de ritos das culturas mais primitivas, em uma tentativa de refletir sobre aquilo que foi escrito ou ainda registrado pela arte em desenhos de símbolos e formas, que podem de forma indireta revelar algo sobre a nobre senhora. Se refletirmos que morte é o fim da vida, simples e sem maiores argumentações, esta afirmação aponta inexoravelmente para àquilo do qual é o fim. A morte poderá, então, ser concebida somente em relação ao seu polo contrário, a vida. Ambas são duas dimensões de um mesmo processo. A morte faz parte integrante do futuro da condição do ser e a ciência vem demonstrando que a morte e a vida se pactuam indestrutivelmente entre si patrocinando todas as mortes e todas as vidas. A razão pela qual a morte existe está proporcionalmente vinculada á necessidade da organização ou reorganização da existência, sendo que a mesma é dividida pelo centro e unidade pelas bordas. A vida está, de fato, fundada sobre uma série ilimitada de mortes. A morte de um é a vida de outro em um dualismo eterno e contínuo, no qual o débito da vida é resgatado pela morte e vice-versa, manutenindo o equilíbrio existencial da natureza. Nasce o ser como uma fortuidade existencial, e como resgate a morte é absolutamente necessária. A doença não é a causa principal da morte, mas estar vivo nos leva a morrer. O sentido da vida revela o significado da morte, e pensar em morrer implica encarar uma questão de vida, mesmo se é para determinar o modo pelo qual ela irá, poderá ou deverá realizar-se. Se há algum sentido na morte, ela se revela no significado da vida e este significado somente será entendido pelos seres conscientes. Pois mesmo percebendo a impotência diante da inexorabilidade da morte, o ser consciente tem uma vantagem e o poder extraordinário que é prolongar o término ou ainda, antecipá-lo, agindo sobre o processo. Este poder de intervenção sobre o processo de prolongar ou antecipar a morte, pelo exercício soberano da vontade, dá ao homem o direito moral de morrer ou viver. A afirmação do direito de toda pessoa em dispor de sua própria vida indica que nesta afirmação está à aceitação da legitimidade de uma assistência quando o sujeito a solicita, em toda sua lucidez. A morte e sua ambiguidade levam-nos a pensar que por detrás de seu sentido aparente, escondem-se significados latentes de que o homem, desde o pensamento mítico até o pensamento filosófico e científico, busca compreender. Neste processo, do qual temos poucos elementos que nos permitam uma interpretação segura, por causa da enorme a quantidade de representações e de concepções que se opõem e se contradizem a respeito da morte, no transcorrer da história da humanidade. O pluralismo ideológico, cultural e a secularização são fatos inquestionáveis em nossa época. Estamos em um ponto de que não dispomos de desvio para retorno, o caminho é para frente e sempre será para frente. O esforço das mais diversas culturas e sociedades em exorcizar a figura da morte tem distanciado o homem de sua natural realidade. Desde tempos imemoriais os homens têm delegado o poder de decisão sobre a sua vida e sobre a sua morte às instâncias dadas como especiais, exemplo disto à medicina, à religião e outras. O poder da medicina ao longo da história tem levantado questionamentos em relação à sua competência no cuidado com a saúde humana e a exacerbação desmesurada do exercício desse poder. O conceito de morte sempre foi um conceito médico que hoje é exigido que seja contextualizado, passando toda a problemática que concerne às condições do viver e do morrer a ser do interesse de toda a sociedade. Somos testemunhas algo especialmente surpreendente e sem precedente. Somos testemunhas das profundas mutações que vêm transformando as condições existenciais dos seres. A revolução científica moderna, com toda a tecnologia vem conquistando tão espantosa capacidade de interferência e de possibilidade de transformação dos sistemas físicos e orgânicos e do próprio ser humano, DNA, fragilizando a capacidade de prever as consequências de tais avanços. Esta revolução incapacita a sociedade em exercer o poder de intervenção no próprio avanço dos projetos tecnológicos e científicos, tão incomensuráveis que é a nossa capacidade de avanço nestas áreas. A compulsão parodóxica desse poder tecnológico, cria uma curiosa situação que tem o homem como seu criador e que o torna sua primeira grande vítima. O projeto tecnológico e científico é um fenômeno que vem provocando uma preocupante ruptura em relação às categorias éticas e estas se veem incapazes de dar racionalidade a essa nova realidade. Se a condição humana pode ser transformada, as representações e significados devem sofrer revisão, inclusive o viver e o morrer. A nova situação provocada pelas transformações criadas pela tecnologia e ciência, tem tido grande impacto sobre a compreensão da realidade humana, do processo da vida e do processo da morte. A ciência chega mesmo a definir o morrer como mera disfunção orgânica, no qual o corpo não apresenta mais as condições básicas e necessárias para aquilo que é definido como “viver”. A efetividade dos transplantes de órgãos exige que se caracterizem as condições requeridas ao doador para que se possa realizar a ablação. E muito mais, a possibilidade de suprir e manter as funções vitais por tempo quase indefinido exigiram a reconsideração sobre o problema do diagnóstico de morte. A própria aceitação do conceito de morte cerebral, definida a partir da perda da função integradora do organismo como um todo por parte do sistema nervoso central, não impediu que muitas dúvidas fossem levantadas sobre a legitimidade desse diagnóstico. Há especialistas que avançam para o conceito de “high brain criterion”, ou a teoria da morte neocortical em oposição àquela aceita como morte cerebral. Quando um indivíduo perde irremediavelmente de sua consciência, que é a base de todo o ser, a capacidade de comunicação e a sua afetividade, características identificadoras de sua personalidade, do seu "self", então este indivíduo está morto para os seus entes próximos, mesmo que seu corpo ou o corpo que o animava deva ainda ser considerado como biologicamente vivo. Em uma análise do descrito acima, vemos que se estabeleceu a distinção entre organismo e consciência que se estende para todos os seres. Afirmar que o que um organismo é um ser consciente, significa reconhecer-lhe o caráter único e exclusivo daquela vida. É esse caráter, a consciência, que transforma essa vida em existência; de simples organismo, bios, vida compartilhada com todos os seres vivos, o ser passa a um ser único, existente e consciente. Esta existência, modo de ser peculiar aos seres conscientes, confere aos seres a dignidade. Em outros termos, a vida dos seres é digna não por ser vida, mas justamente por ser uma existência, isto é vida existencial. Para algumas culturas a morte é algo ininteligível; é propriamente impensável para muitos e absurda para outros tantos. E se a morte é o fim da vida, então a consideração do direito de morrer deve estar articulada com a concepção do fim da vida e de sua finalidade. Voltamos sempre à clássica questão: porque viver? O sentido da vida está no significado da morte e o sentido da morte está no significado da vida. Epicuro em um dos seus pensamentos considerava a morte, por ser impensável, inexistente. “A morte nada é para mim!”, disse ele, “pois, se me encontro em vida, ela não existe ainda e se existe, eu já não existo.” Segmund Freud com sua teoria do principio do prazer diz que a motivação básica da vida “é o prazer”. Qualquer ação está direcionada a buscar o prazer e evitar a dor. Todas as atividades dos seres, conhecimento, arte, a natureza são meios para atingir este fim. Pascal em seus Pensamentos disse: “Todos os homens buscam ser felizes, até aqueles que vão enforcar-se”. O estoicismo pregava o esforço de uma meditação contínua cuja intenção era assegurar a soberania sobre a morte. Ficou célebre o pensamento de Sêneca: "Para não temer a morte, pense nela sem cessar". Tal soberania que será a realização decisiva e radical da razão sobre as paixões, e, por isso, sobre o destino, constitui a finalidade, a sabedoria e a felicidade da vida estóica. A paixão a ser dominada era a adesão instintiva à vida e o horror instintivo da morte. O filósofo procura um estado de alma no qual o homem, pela força da razão, pela convicção viva de que a morte não é um mal em si, teria enfraquecido tanto esta adesão instintiva que poderia decidir, tranquilamente de seu próprio viver ou morrer. Se numa situação de vida, a razão oferece motivos fortes para abandonar esta vida, o homem deve estar pronto a escolher livremente e realizar calmamente a sua própria morte. Para o estoicismo, por essência uma doutrina da liberdade, esta morte não se iguala ao suicídio, produto da paixão, e, portanto, o cúmulo da servidão. Enquanto o sofisma de Epicuro significa mais uma tentativa de escapar senão à morte, pelo menos da ideia e da obsessão da morte, a experiência estóica é a experiência de uma coragem pela qual descobrimos um fundo de esperança que subsiste quando já não há mais nada a fundar a esperança de viver. Em sua "História geral das religiões", M. Leenhardt observa que os Kanakas, índios melanésios, não representavam a morte, o seu sentido lhes era ausente. Eles possuíam a representação da perenidade da vida. Em outros termos, o vivo não se opõe ao morto. Este não passa de um outro estado, de uma outra fase do vivo. "onde vemos continuidade da vida e fissura, o kanaka vê continuidade." Esta ausência de sentimento da morte, segundo Leenhardt, está ligada à inexistência de uma sensação do próprio corpo. Kamo para o primitivo da Nova Caledônia significa "o que vive" isto é, o ser consciente. Vivos e mortos, dos deuses, os totens, os antepassados vivem de uma mesma realidade vital, que os kanakas designam por bao. Bao não é precisamente a alma, ou o outro do corpo, uma vez que o corpo enquanto tal não existe. A noção de bao estabelece a ligação entre a morte e a vida, tal como nós a entendemos. Ela anula a cisão e explica porque para o kanaka não há a ideia de destruição na morte, cfr. Leenhardt – Do Kamo. A noção de alma é desconhecida para os primitivos. De fato o caráter fundamental da noção de alma tal como muitos a concebem é a imaterialidade. Ora o primitivo pré-categorial, estado do ser humano que está desde a tenra idade até o 9 anos, não se distanciou e individualizou-se em relação às coisas, à natureza: ou não há um mundo em face do qual e em função do qual os indivíduos se afirmariam. "O primitivo, afirma Leenhardt, é o homem que não concebeu o vínculo que une seu corpo e ele próprio e permaneceu, então, incapaz de singularizar-se.", Do Kamo. O homem pré-categorial não se representa como se defrontando com a natureza, ou como indivíduo na sociedade. Para ele que ainda não tomou suas distâncias para a individualização, o equilíbrio não é centrado sobre “self”. O eu afirma-se posterior ao nós; a retomada individual sucede a experiência da unanimidade. Para ele a autonomia individual, erigida pelo pensamento ocidental como critério de valor moral, não é um dado imediato da consciência mítica. "Existir é participar", afirma Lucien Levy-Brühl. A primeira consciência pessoal é tomada no grupo e por ela é sustentada segundo seus valores, na comunidade. A individualidade aparece como um nó no tecido das relações sociais, formando, desta forma, uma teia de relações que interagem entre si produzindo transformações individuais e no meio em que vive. Fora desse tecido social, da comunidade o homem não é nada, perde seu lugar ontológico. Leenhardt afirma que a idéia de morte para os Kanakas é substituída pela ideia de abolição das relações sociais. Os Romanos tinham ideia semelhante ao "empregar como sinônimas as expressões "viver" é "estar entre os homens", “inter homines esse”, ou "morrer" e "deixar de estar entre os homens", “inter homines desinere”," cfr.Arendt,H.A condição humana p.15. Na época moderna, era das primeiras democracias emergentes, aos ideais da revolução francesa acrescenta-se um quarto que é a segurança. E a morte, mesmo para os crentes, se apresentava como a insegurança inexorável. Não é de se admirar que os indivíduos até que um dia possam vencer a morte, queiram negá-la, de certo modo, ou em termos menos radicais, mantê-la distante de seus pensamentos. A ciência moderna teria contribuído com este distanciamento face à morte ao objetivá-la. Atualmente, no hospital moderno a morte é um simples "caso" a ser discutido entre profissionais da saúde; e no laboratório, ao lado, não passa de um problema a ser analisado. Sabemos muito bem que em muitos casos os homens e mulheres morrem ou não porque se decidiu, no hospital, que sua hora havia chegado. Será que não está na hora de eles decidirem quando vão morrer? O modelo mais recente da morte está vinculado à medicalização da sociedade, isto é, a um dos setores da sociedade industrial no qual o poder da técnica foi acolhido com maior entusiasmo e com menor contestação. Algumas vozes começam surgir duvidando da "benevolência" deste modelo, tido como um dos princípios da Bioética, incondicional deste poder médico. Aqui nossa consciência coletiva poderia muito bem promover uma mudança nessa atitude questionando criticamente esse poder da medicina, cfr. Ariès –Essai sur l"histoire de la mort en Occident du Moyen Âge à nos jours. 1955 p.587. Outrora a morte era um mistério, em nossa época ela erroneamente tem se tornado um problema. Gabriel Marcel, filósofo francês, assim distingue o problema do mistério: O problema é algo que eu encontro, que impede o caminho. Ele está totalmente diante de mim. Ao contrário, o mistério é algo em que me encontro engajado. O problema está do lado do TER do verificável, e o mistério do lado do SER do inverificável. Na história recente pode-se constatar que por onde passa ciência o mistério se transforma em problema. E a morte vem recebendo o estatuto de problema sendo ele em si um mistério. E aí pode residir do ponto de vista do pensamento filosófico um outro problema: a degradação da morte de mistério em problema. Se o "mistério me envolve" ele se torna como um clima. E há questões e respostas que ocorrem em um clima e não nas distinções que possam satisfazer a clareza da lógica da razão e do direito. As questões derradeiras presentes no morrer são questões daquele tipo. Em um clima de mistério, até um gesto que, visto do exterior, poderia parecer como eutanásia ativa seria justificado, permitindo ao moribundo conservar sua dignidade pessoal plena até o último momento. Respeitado o clima de mistério é bem possível que a vontade autêntica do doente seja respeitada, pois, é este clima que propiciará à essa vontade manifestar-se em sua verdade. Afinal porquê exigir que todas as situações, sobretudo as situações limites, sejam plenamente nítidas quando sabemos que a ambiguidade e a contradição são características fundamentais da condição humana? Para Camus ninguém morre por causa de um teorema euclidiano. Galileu que considerava como importante uma verdade científica, a abjurou com toda tranquilidade desde o momento em que ela colocou sua vida em perigo. De fato, ele fez bem, pois, que decidir qual dois, a terra ou o sol, gira em torno um do outro, é indiferente, ou até uma questão banal. Para Camus o sentido da vida é a mais urgente das questões. O suicídio é uma questão metafísica de importância. Malraux, notável escritor francês afirmou: "Aquele que se mata corre atrás de uma imagem que ele se formou de si próprio; nunca ninguém se mata senão para existir". Uma vida sem morte seria incompleta, talvez impensável e até insuportável; só a morte, como ainda afirma Malraux, transforma nossa vida em destino. O morrer que cada um qual traz em si, perturba a afetividade, aliena a razão. A morte é o nada ou o quase nada que nenhuma ciência consegue apreender tanto no plano dos critérios quanto no plano das definições. Mesmo assim é sobre o nada que se voltam às angústias e que todas as energias parecem mobilizar-se para esconder sob os mais diversos "véus" ou até tentar suprimir fazendo de conta que ela passa ao longe. Os outros ... morrem! Onde podemos situar a morte? Em nenhuma parte e também em todo lugar. Enquanto uma "essência" não se pode situá-la em parte alguma, já que ela não é senão ruptura, fenda, simples transição de um antes e o depois, ser vivo e cadáver. Mas enquanto processo ela está em toda parte: o morrer inicia-se com o nascer, acelera-se com o envelhecimento. Se toda a relação com a morte assim como toda relação com a sexualidade é mediatizada na pluralidade das relações sociais, então a morte está presente em todos os níveis da vida cotidiana. Enquanto não estando em lugar algum a morte não tem o estatuto de objeto empírico: é um simples ponto intocável e sobre o qual o que se pode dizer, como acima afirmei, que está entre um antes, pensamos em um doente terminal, ou nas atitudes em face dos idosos, e um após, os rituais funerários, o culto aos ancestrais, o luto. A morte é um termo, uma ruptura. A morte em si não existe; no entanto, a realidade que se estende por debaixo do conceito toma formas as mais variadas. Temos a morte física, como queda na entropia existencial; a morte biológica expressa no cadáver; a morte genética ou a desprogramação programada que determina a duração de nossa vida; a morte espiritual; ou a morte psíquica, a do demente enclausurado em sua alienação; e as inúmeras faces da morte social, aquela provocada pelo encarceramento, o abandono no hospício, a psiquiatrização das questões mentais e espirituais, as aposentadorias, aquela dos milhares de excluídos que vivem à margem da sociedade. Um traço que perpassa todas essas figuras é a ideia de corte ou de ruptura: entre vivos e mortos a ruptura física e social. O esquizofrênico em ruptura com o mundo é alienado no hospital psiquiátrico, etc.. A morte em si não significa nada. Como citado acima só há morte porque há vida. E só concebemos, imaginamos e representamos a morte em contraposição à vida, como sua negação: a morte é a "não mais vida". Na tentativa de buscar um sentido ao fenômeno da morte poderíamos indagar se é possível falar de uma experiência da morte, do morrer. Diria que o homem como sujeito individual não poderia fazer experiência de sua própria morte. Afinal como saberíamos? Mas o que ocorre no morrer? é o homem quem morre e leva consigo todas a suas experiências ou o corpo? Para a concepção dualista cujo defensor mais notável foi Platão, a morte significa a morte do corpo e consequente purificação da alma. Para uma das concepções contemporâneas da antropologia filosófica que tenta ultrapassar tal dualismo, afirmando o existir como a relação dialética de corporeidade e consciência, ou da facticidade e transcendência, a morte representaria a morte do corpo. Após a morte, a corporeidade se ausenta, o homem deixa de existir. Posso constatar a morte de outro, posso acompanhá-lo em seu morrer. Mas poderia eu apreender o sentido ontológico do morrer? A morte se me apresenta como um fato metafísico pela morte do outro. Posso experienciar o evento acontecer no outro, simpaticamente, posso talvez sentir com ele. E, de repente, tudo termina, e continuo a experimentar a ausência misteriosa que se faz presente em um corpo inerte. A morte é a presença ausente, o morto, agora o cadáver é a ausência presente daquele que outrora fora. François Mauriac em seu Diário (1935) escreveu: "na terrível constatação que provamos diante do espetáculo de uma morte, ocorre uma sensação de logro, aquele que amamos está ali e não está mais". Naquele momento a morte se nos apresenta como o paroxismo do não sentido. A morte é o próprio signo da ausência fatal, definitiva dos assuntos humanos, H.Arendt. A experiência da morte do outro não oferece nenhum sinal, a meu ver, de uma continuidade, de um novo estado. Lembrança, logro, desaparecimento. Simone de Beauvoir assim se manifesta sobre a morte de seu companheiro J.P.Sartre: "Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. É assim; já é muito bonito que nossas vidas tenham podido estar em acordo tão longo tempo". La cérimonie des adieux. Na mesma época outro filósofo existencialista Marcel afirmou: "Amar alguém é dizer-lhe: tu não morrerás". O que pode eventualmente ocorrer após a morte é dado somente pela promessa vinculada a um ato de crença que aspira a um reencontro com o outro amado que acaba de morrer. Uma crença que nos promete que ouviremos novamente sua palavra em condições que desconhecemos ou sequer pressentimos. No entanto, creio que a experiência do morrer de pessoa amada não poderia nem destruir nem confirmar tal promessa. A experiência da morte do outro se dá por participação. Ambos, antes unidos pelo elo da comunidade, separam-se pela ruptura. A experiência da morte em sua crueza se revela como um sentimento de infidelidade trágica de sua parte, assim como existe certa experiência de morte no ressentimento diante da infidelidade entre vivos, no sentimos traídos pelo ausente. Passo a apresentar breves observações sobre uma questão que reputo de extrema atualidade no debate filosófico da bioética. A afirmação acima de que a vida e morte são dois aspectos de um mesmo processo, de uma mesma condição, a do ser consciente. A morte é parte integral da vida. Assim sendo, é razoável supor-se que a morte deve ter uma proteção, prevista no ordenamento jurídico. É consensual a aceitação, aliás inscrita na "Declaração dos Direitos Humanos", de que todo ser humano deve ser tratado humanamente. Isso implica que cada ser humano, sem distinção de sexo, idade, cor, língua, religião, origem étnica ou social, possui uma dignidade inalienável e intocável e estas definições podem e devem ser estendidas à todos os seres. E como consequência, espera-se que cada um, indivíduo ou o Estado, se veja obrigado a honrar essa dignidade e garantir sua efetiva proteção. Pode-se, prosseguindo na argumentação, esperar que o direito de morrer com dignidade deva também ser tão bem protegido como outro direito vinculado ao viver. Assim, interdições ditadas pelo Estado, que causassem uma morte dolorosa e mesmo atrozes a qualquer ser, deveriam ser consideradas como um ultraje contra a dignidade. Se a morte faz parte da vida, o direito de morrer significa o direito de viver os instantes finais com dignidade. As questões relacionadas à terminalidade da vida, ao tratamento de pacientes terminais e/ou qualquer ser têm sido tratadas tradicionalmente pela sociedade e quanto à dimensão ética dessas questões tem-se buscado um fundamento e argumentos, de modo proeminente, em correntes doutrinárias religiosas. Hoje, no entanto, não se pode mais ignorar o processo crescente de secularização. "Evoluímos numa sociedade pluralista, tanto religiosa, como política, moral e filosoficamente, onde cada um conta apenas com a força da sua palavra", Ricoeur-1993 p. 71. As crenças religiosas já não constituem o bem comum. São apenas mais uma palavra que deve fazer-se ouvir no meio de outras. O reconhecimento do pluralismo cultural e ideológico nos leva a colocar as questões em outros termos, aceitando a diferença das perspectivas conflitantes. Não se concebe mais um discurso único, hegemônico e dogmático. No que diz respeito ao denominado "direito de morrer", há consenso, hoje em muitas sociedades, sobre a questão da denominada "eutanásia passiva" baseada no princípio da "morte com dignidade". Como todos sabemos, os avanços nas ciências biomédicas permitem prolongar nossa vida. E isso, sem dúvida, é extraordinário. Esse prolongamento é, ao meu ver, no entanto, como uma faca de dois gumes. Pode provocar o prolongamento do sofrimento e da dor intolerável; e viver quando a situação do doente é tomada pela dor e pelo sofrimento insuportável não é um atentado à sua dignidade? O sofrimento dignifica o indivíduo, afirmam muitos. Essa ideia, platônica, retomada pelo cristianismo pode, de um outro ponto de vista, ser considerada doentia. E como saber o limite do tolerável em matéria de sofrimento? Quem define? O médico? O religioso? Ambos espectadores ignorantes! Quem poderá dizer o quanto de sofrimento deve suportar uma pessoa até que sua morte, abreviada, possa ser julgada aceitável? Seria, por acaso, um ato heroico e admirável morrer de "modo natural" ao término de um longo combate travado pela medicina de ponta com tecnologia complexa e invasiva? Todos aceitamos que o ser humano tem o direito de viver em dignidade. Porque negar-lhe, de modo reacionário, o poder de decidir sobre sua morte com dignidade e que seja auxiliado nessa escolha? Porque aqueles que detêm o poder de controle impede o exercício de um direito? O polêmico e eminente teólogo católico suíço Hans Küng, que há muito tempo está em rota de colisão com o magistério eclesiástico, publica com outros autores um livro interessante cujo título é, em edição inglesa, "Dying with dignity; a plea for personal dignity". Considero particularmente interessante e decisivo para o nosso debate seguir, em suas grandes linhas, a argumentação desse pensador. Em diversos países já está acolhido na jurisprudência o princípio denominado princípio de "diretrizes antecipadas", segundo o qual se reconhece a uma pessoa o direito de expressar antecipadamente a própria vontade a respeito da suspensão de terapias de suporte vital quando se encontra em situações médicas particularmente graves e bem definidas como, por exemplo, o estado vegetativo permanente. Hans Küng advoga a extensão desse princípio afirmando fortemente o direito da pessoa humana à escolha livre em todas as situações que se referem à vida e à morte. Defende, portanto, não só a suspensão da terapia de sustentação vital com o pedido do paciente, eutanásia passiva, mas também a interrupção ativa da vida do doente terminal a seu pedido, eutanásia ativa. A sua argumentação se sustenta em dois tipos de consideração. A primeira de ordem ética. Considera-se que há consenso entre médicos, juristas e bioeticistas sobre a legitimidade moral da eutanásia passiva, vale dizer, "deixar o doente morrer de morte natural"; percebe-se, por outro lado, que o limite entre omissão e ação, eutanásia passiva e eutanásia ativa, torna-se cada vez mais fluido e tênue, justamente por causa dos avanços consideráveis na tecnologia científica da biomédica. Por exemplo, interromper a ventilação artificial de um paciente incapaz de respiração autônoma é omissão ou ação? Se se admite isso, pode-se aceitar a possibilidade de se considerar justificável a eutanásia ativa. Küng, desenvolve outro argumento, de ordem ético teológica. Retoma a "Declaração das Religiões para uma Ética Global" aprovada no Parlamento das Religiões Mundiais, realizada em Chicago de 1993. Nesse documento, confronta a norma "não matarás", comum a todas as religiões, contrapondo seu lado positivo: "respeita todas as vidas". Embora o princípio conserve um valor incondicionado, Küng observa que "estamos em um tempo de mutações velozes de valores e normas", fato admitido até por teólogos e moralistas conservadores, devido às conquistas inauditas e formidáveis da tecnologia avançada na biologia e na medicina. Esses mesmos teólogos conservadores, segundo Küng, após terem combatido por longo tempo a ideia e o projeto de planejamento de familiar no controle da natalidade, acabaram por aceitá-la. Deus atribuiu o início da vida humana à responsabilidade do homem. Do mesmo modo, afirma Küng, é oportuno admitir-se que, também o fim da vida humana, em vista dos novos contextos da medicina contemporânea, possa ser posto por Deus sob a responsabilidade do homem. Assim este, responsável de seu agir e de sua vida, assume igualmente a responsabilidade pela sua morte. Na realidade, hoje o processo de morrer pode prolongar-se pela intervenção da tecnologia médica. Como vimos isso pode significar extensão do sofrimento do doente. Quem deseja lutar até o último instante, exerce um direito e deve ser respeitado e auxiliado. Porém esse direito não deve transformar-se em dever. "O direito à vida, afirma Küng, não equivale a uma coerção em viver". E mais, contra a afirmação usual de teólogos moralistas conservadores segundo a qual o abandono prematuro da vida é um "não" do homem a um "sim" de Deus, tendo sido suposto que a vida é um dom de Deus e que o homem não pode dela dispor; ou então, é um crime contra a vontade de Deus. Küng rebate afirmando que tais argumentos se fundam numa falsa imagem de Deus, embasada em algumas passagens bíblicas escolhidas de modo parcial e interpretadas literalmente. O teólogo declara-se, ao contrário, a favor de uma imagem de Deus como o "Pai dos frágeis, dos sofredores, dos perdidos... o Deus solidário da Aliança, que deseja ver no homem, feito à sua imagem e semelhança, um parceiro livre e responsável". E proclama, assim, uma "terceira via teológica e cristãmente responsável entre um libertinismo anti-religioso e irresponsável, que afirma o direito ilimitado ao suicídio, e um rigorismo reacionário sem compaixão, segundo o qual também aquilo que é insuportável deve ser aceito como dom de Deus". Tais posições defendidas por um teólogo de inquestionável competência e autoridade reconhecida mundialmente, mesmo que se dirijam a espíritos religiosos, são de particular pertinência em nossa atual situação de reivindicação pelo respeito à autodeterminação e dignidade humanas, sobretudo, na situação próxima à morte. E muito mais, são argumentos racionais em prol do esforço em rebater de modo racional todo preconceito de ordem ideológico religiosa que tenha pretensão de impor suas normas definidas como universais e necessárias. Qualquer cidadão tem o direito de praticar sua religião, segundo os cânones que marcam sua igreja. Agora, este mesmo cidadão não pode impor suas crenças ao resto da sociedade, tal como as igrejas desejam. As igrejas se aproximam do estado laico de forma perigosa e com uma avidez promiscua que envergonham os mais santos, buscam ter uma relação privilegiada com o estado, tanto durante os períodos ditatoriais como nos escassos períodos democráticos que o Brasil teve em sua história. As Igrejas brasileiras não são um instrumento democrático, senão antidemocrático, posto que não aceita que suas crenças são particulares, ou seja, deveriam afetar apenas seus crentes, e não universais, ou seja, que se apliquem a toda à população. E as manifestações ultrarreacionárias das igrejas brasileiras que foi, durante a ditadura e outros tempos, nunca aceitou que suas crenças e sanções não devem transformar-se em políticas públicas em um sistema democrático ao contrário, é de uma enorme insensibilidade democrática, além de uma grande crueldade e inumanidade. Negar o direito de morrer sem dor e com dignidade às pessoas como consequência de um mandato de seu Deus é delegar a governança de um país a um poder terreno não democrático que utiliza um poder supostamente divino, que ninguém elegeu, para controlar a população. Tem sido um grave erro o excessivo respeito e docilidade mostrados pelos partidos às imposições de um poder fático que provocou tantos danos e continua danando a população, e tudo isso em nome de seu Deus. O sentido da morte insere-se no sentido da vida. O princípio é a vida. A morte nos toca, nos apela. O morrer é um ato humano, da condição humana. As representações da morte nas diversas culturas a identificam com a própria angústia. Daí a exorcização e mais recentemente a banalização, violências de toda ordem. Penso ser relevante reintroduzir o debate sobre a morte em termos críticos e racionais, transcendendo todo particularismo do discurso único, dogmático e moralizador de ideologias conservadoras e reacionárias. A morte é sim um fenômeno cujo significado tem sua repercussão na dimensão social; não se pode, no entanto, reduzi-la a um dos aspectos. Encaro como urgente a indagação crítica na bioética sobre a preocupação plena de todas as consequências da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a dignidade e a integridade da pessoa humana, sujeito de deveres e direitos. Assim ao homem cabe tomar sobre si a responsabilidade do viver e do morrer.
Em memória ao meu velho pai:
Benedito do Nascimento - Selá
Em memória ao meu Velho, amigo e companheiro:
Carlos Alberto Schmidt – Namaste
Guguamany susuaguany selàà, madi madi madi…selàà.