Dizem que
o maior medo do ser humano é o de falar em público; em segundo
lugar, vem o medo da morte. No caso dos economistas, o maior medo é
o da deflação, seguido bem de perto do medo da inflação baixa –
normalmente, algo inferior a 2% ao ano. Nada amedronta mais um
economista do que a perspectiva da “espiral deflacionária”. É o
Primeiro Cavaleiro do Apocalipse, pois certamente precede a Peste, a
Guerra, a Fome e a Morte. Então, quando o assunto é a criptomoeda
bitcoin, uma das críticas mais contundentes dos economistas é a sua
natureza deflacionária – com uma oferta rígida e limitada, uma
economia em crescimento baseada em bitcoins seria inerentemente
deflacionária. Atualmente, a tendência de baixa dos índices de
inflação de preços na Zona do Euro e a suposta inflexibilidade do
euro têm levado economistas a temer uma deflação e atacar a moeda
única europeia com críticas similares às feitas ao bitcoin: uma
moeda inflexível, capaz de gerar uma perigosa deflação. Um dos
proponentes dessa ideia é o recém-empossado ministro das Finanças
da Grécia, Yanis Varoufakis, que há até pouco tempo mantinha
ativamente um blog com comentários sobre a economia no mundo
pós-2008. Como agora se encontra no centro da crise fiscal da
República Helênica, teve que deixar de lado a teoria – e o seu
blog – para colocar em prática suas crenças. Em uma série de
artigos escritos em 2013 e 2014 – que só agora ganhou notoriedade,
fruto de sua nova função pública –, o economista grego avalia a
moeda digital, elencando uma série de inovações e falhas e, por
fim, lançando a sua própria versão de uma moeda criptográfica
europeia capaz de resolver os percalços da Zona do Euro. De fato,
Varoufakis parece ter compreendido o funcionamento do Bitcoin com
todas as suas nuances; isso temos de reconhecer. Há até um certo
fascínio do economista diante da invenção de Satoshi Nakamoto. Mas
a sua fobia deflacionária o leva a rechaçar qualquer chance de
sucesso do Bitcoin no longo prazo – a despeito de a criptomoeda já
estar no seu sétimo ano de vida. Tratemos, então, de examinar os
principais pontos levantados pelo novo ministro das Finanças da
Grécia. A deflação é realmente um problema? Varoufakis aponta
dois grandes riscos da deflação:
i) a
potencial redução de investimento e o subsequente aumento do
desemprego e
ii) a
postergação das compras de bens duráveis.
Porém, como veremos a
seguir, nenhum dos riscos é real. São ameaças imaginárias,
teoricamente insustentáveis e empiricamente inexistentes – algo
típico dos modelos econométricos dos economistas. Segundo o
ministro, “Num cenário deflacionário as empresas podem reduzir a
produção para frear a queda nos preços de seus bens finais e, com
isso, acabam cortando salários e demitindo funcionários, em um
círculo recessivo que nunca acaba, cujo resultado é uma demanda por
seus produtos menor ainda”. Se estivéssemos redigindo um mero
tweet, este seria o momento de escrever “WTF???”. Mas vamos
manter a compostura e prosseguir na argumentação de Varoufakis.
Além do problema acima, o economista grego alega que “devido ao
intervalo de tempo entre a compra da matéria-prima e a entrega do
produto final, a deflação faz com que as empresas adquiram seus
insumos quando os preços médios estão acima do que quando o
produto final é vendido”. Assim, conclui o ministro: “Quanto
maior a taxa de deflação, menor a taxa de lucro e maior o número
de empresas que precisam ou despedir empregados ou fechar por
completo”. Seria então justificado o medo deflacionária de
Varoufakis? Definitivamente, não. Primeiro, uma queda nos preços
dos bens finais não é um sinal de problema para nenhuma empresa. Na
verdade, a dificuldade começa quando há uma queda na lucratividade,
o que depende não apenas do preço de venda, mas também,
obviamente, da estrutura de custos de uma firma. Ademais,
praticamente nenhuma empresa tem o poder de controlar o mercado
unilateralmente, restringindo produção para elevar preços. Há a
concorrência, que possivelmente abocanharia a fatia de mercado
liberada por uma empresa. É falha, portanto, a premissa de que as
empresas, em nível agregado, possam demitir funcionários para
restringir o nível de produção. É mais absurda ainda a conclusão
de que esse cenário leva a um círculo recessivo que nunca acaba.
Ora, basta o bom senso para entender que uma recessão infinita capaz
de nos conduzir de volta à Idade da Pedra não é uma suposição
plausível. Varoufakis parece ignorar dois pontos importantes. É
possível, sim, que os insumos antes adquiridos só possam ser
revendidos por um preço menor em um primeiro momento. Mas se a
premissa é de deflação contínua, o custo de repor os estoques
também irá declinar. A estrutura de custos não é imune à
deflação. Esse é o ponto número um, mas não é o principal. A
questão fundamental é que empresas não são meras repassadoras de
mercadorias que compram e revendem – embora haja, claro, modelos de
negócios assim. Há o processo produtivo, cuja função é
justamente a de combinar diferentes insumos e fatores de produção,
transformando estes no produto ou serviço final. Se nesse processo
todo o diferencial entre o produto da venda e a estrutura de custos
for positivo, a empresa lucra e prospera, mesmo em um cenário de
deflação. Queda nos preços de venda não é indício de falência
– assim como a alta dos preços de venda tampouco é sinal de
lucratividade. O primeiro risco apontado por Varoufakis, portanto,
carece de fundamento; não há razão para esperar como efeitos da
deflação uma queda no investimento e redução de emprego. Vejamos
agora o segundo risco que inquieta o economista grego, a tal da
postergação indefinida da compra de bens duráveis. O ministro
reconhece o fato de que, em um cenário de deflação, tardar uma
compra pode recompensar o indivíduo por “receber mais valor”
pelas unidades monetárias que dá em troca. Isso não é um
problema, segundo Varoufakis, quando não são todos os preços a
cair de uma só vez. “O benefício oriundo da paciência nos EUA
hoje”, argumenta o economista, “advém da procura ativa por um
negócio melhor em um mercado em que a informação é imperfeita”.
A deflação, no entanto, “recompensa a paciência apenas por sua
paciência, em vez de ser uma recompensa por uma atividade de procura
custosa”, conclui Varoufakis. Portanto, cuidado, caro leitor, se
receber em casa um folheto com as ofertas da semana; você pode
estar, inadvertidamente, gerando um grave transtorno macroeconômico.
Esse é o corolário da afirmação do ministro. Para encerrar,
Varoufakis revela qual a questão essencial: “Na deflação, todo
mundo se beneficia da espera, e a demanda agregada, então, colapsa,
penalizando a todos”. Assumindo como premissa que a tal demanda
agregada existe e pode ser estimulada, não há nada que um governo
ou banco central possa fazer além de injetar dinheiro na economia
para “reavivar a demanda agregada”. Inflação monetária não
cria magicamente nova oferta de bens serviços; ela não aumenta a
produção de uma economia, apenas encarece o preço nominal dos bens
e serviços produzidos no território. Política monetária é capaz
de elevar a demanda nominal – emitindo moeda –, mas é ineficaz
para fazer crescer a demanda real – maior oferta de bens e
serviços. Bitcoin, o euro e a Grécia. De acordo com Varoufakis, o
bitcoin seria uma versão hard-core do padrão-ouro porque a oferta
monetária total e a taxa de emissão são pré-determinadas por meio
de um algoritmo inviolável por qualquer entidade, pública ou
privada. Pode ser uma boa comparação. A única razão do adjetivo
hard-core é que, no caso do padrão-ouro, os governos conseguiam,
com frequência, burlar as regras do sistema monetário, emitindo
mais papel-moeda do que o lastro no metal permitiria. O padrão-ouro
era um sistema rígido, ma non troppo, como vimos diversas vezes na
primeira metade do século XX. A semelhança com o euro advém da
suposta inflexibilidade política e institucional de se imprimirem
euros conforme as necessidades dos países perdulários. O bitcoin é
constrito pelas leis matemáticas; o euro, pelas regras
institucionais e pelo jogo político. Mas assim como o padrão-ouro,
o euro é inflexível, ma non troppo. Basta espernear um pouco e o
Banco Central Europeu (BCE) acabará cedendo e dando vazão às
demandas das nações em apuros fiscais. Prova disso é o
recém-detalhado programa de compra de títulos soberanos de Mario
Draghi – quantitative easing, ou afrouxamento quantitativo, ou
impressão de moeda –, a ser iniciado no dia 9 de março. Sim, o
pretexto utilizado é a cruzada contra a deflação. O resultado
efetivo é subsidiar o refinanciamento da dívida de diversos
governos da Zona do Euro. Mas o ministro da Grécia propõe uma
solução interessante, pelo menos à primeira vista. Aplicar o
conceito e tecnologia do bitcoin a uma espécie de moeda digital
paralela nos países periféricos europeus, como a própria Grécia.
Segundo Varoufakis, seria uma forma de contornar as restrições
insuportáveis impostas pelo euro. Como disse, à primeira vista,
parece interessante. Basta ler suas premissas básicas, porém, para
concluir que o plano é falho, repleto de contradições, e, mesmo se
implantado, jamais atingiria o propósito almejado. Não vale a pena
esmiuçar detalhadamente o esquema de Varoufakis, mas é preciso
destacar dois pontos. O ministro propõe que o Tesouro nacional emita
uma moeda chamada de FT (que significa future taxes), a qual pode ser
comprada pelos cidadãos pagando com euros (1 FT-coin valeria, por
exemplo, € 1.000). O detentor de uma FT-coin poderia resgatá-la
pelo valor de face a qualquer momento ou usá-la depois de dois anos
para pagar impostos a um valor de € 1.500. Lastrear as FT-coin pari
passu com os euros recebidos no câmbio é o primeiro problema.
Precisaríamos confiar que o Tesouro nacional honraria sempre e a
todo momento a promessa de resgatar em euros a FT-coin.
Historicamente, governo algum conseguiu sustentar esse acordo por
muito tempo. Ao primeiro sinal de apuro fiscal, cortava-se o lastro
com o metal precioso ou o dólar – no esquema de Varoufakis, seria
com o euro. A garantia de conversibilidade ao valor de face proposta
pelo ministro é atraente em teoria, mas insustentável na prática.
O segundo problema da moeda digital de Varoufakis é a forma pela
qual ela deveria ser administrada. De acordo com o ministro, a
FT-coin seria gerida por um algoritmo similar ao Bitcoin e
supervisionada por uma autoridade nacional não governamental
independente. Recorro novamente ao argumento acima: em um cenário de
aperto fiscal, tal autoridade nacional seria certamente pressionada
politicamente a agir em prol do “bem-estar da nação” – emitir
moeda para pagar a conta, é claro. Quando se remove a essência do
bitcoin – uma política monetária genuinamente independente,
inviolável e livre de pressões políticas –, perde-se uma das
principais características de uma moeda digital baseada em
criptografia. A FT-coin de Varoufakis não passa de uma tentativa de
introduzir uma moeda paralela com uma roupagem moderna e digital que
em quase nada se assemelharia ao bitcoin. E mesmo que
desconsiderássemos tais falhas da FT-coin, o esquema do ministro
grego jamais atingiria os objetivos pretendidos de prover maior
liquidez ao governo e debelar a deflação. Ao definir que a emissão
da FT-coin obedeça uma regra pré-estabelecida e definida por uma
métrica (um percentual do PIB nominal, sugere Varoufakis), a
autoridade nacional incumbida da tarefa de gerir a FT-coin deveria
optar entre defender as regras estipuladas ou ceder às pressões e
prover liquidez ao governo. E, por fim, se a emissão de FT-coin
seguir uma regra rígida, a autoridade nacional estará incapacitada
de manipular a oferta monetária visando alcançar determinado índice
de inflação de preços, seja ele qual for. Se Varoufakis resolver
as falhas e as contradições de seu plano, ele acabará com uma
dentre duas alternativas: ou uma nova moeda estatal ou uma
criptomoeda baseada na tecnologia do bitcoin. Não há um híbrido
possível. Ou a moeda é apolítica, ou ela está submetida aos
ditames de um governo. Quando uma ideia é boa, ela não precisa ser
imposta sobre a sociedade Infelizmente, não há muito que aproveitar
do esquema do ministro de Finanças da Grécia. Nem para a Grécia ou
países periféricos do euro, nem para o próprio bitcoin. Nenhum
Estado adotará uma criptomoeda porque nenhum governo deseja se
submeter às amarras de uma moeda apolítica. Yanis Varoufakis
aparentemente entende e até admira a invenção de Nakamoto, mas
esbarra no pânico da deflação que tanto aflige os economistas. O
ponto mais positivo desse episódio não é o plano do ministro em
si, mas a crescente legitimidade do bitcoin. Há alguns anos, a
tecnologia era ignorada. Economistas a olhavam com desdenho. Hoje a
realidade é outra. Hoje o bitcoin inspira possíveis soluções ao
sistema financeiro mundial. Hoje a tecnologia por trás da
criptomoeda é objeto de estudo e fascínio. Hoje, longe de ser
ignorada, a tecnologia do bitcoin tende a ser imitada, aprimorada e
aplicada nos mais diversos casos. Ao contrário do que pregam os
economistas, a natureza deflacionária do bitcoin não é um
empecilho para uma adoção maior e uso massificado. Ao contrário do
que propõe Varoufakis, a
tecnologia do bitcoin não pode ser – e jamais será – usada para
socorrer os países periféricos da Zona do Euro. O defeito
fundamental da moeda única europeia reside na sua natureza política
e estatal, em que há uma autoridade monetária única para
jurisdições fiscais independentes. Que os gregos saibam escolher o
melhor caminho, pois não há alternativas boas. Cedo ou tarde,
acabaram impondo sobre a população da Grécia uma nova moeda
estatal, como o velho dracma, ou algum esquema mirabolante, como a
FT-coin de Varoufakis. O consolo é que não precisarão ir a
Bruxelas para protestar contra a inflação rompante que certamente
virá. Quando uma ideia é boa, ela não precisa ser imposta à
sociedade. Já temos uma ideia boa hoje, e a sociedade está
escolhendo. Ela se chama bitcoin. Mas ela não serve para socorrer
governos irresponsáveis. Ela serve para prover aos cidadãos uma
válvula de escape dos abusos da moeda cometidos por quem alega estar
trabalhando em prol do povo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário